Ly Sabas

Basta de poemas para depois... (Mário Quintana)

Textos


 
Oficina  Literária  – “ A Caixa Mágica” – Conto coletivo inspirado em  “A noite estrelada”  de Vincent van Gogh  

 
 1 – Alberto Carmo:
 
Estava sentado numa pedra sei lá onde. Devia estar sonhando diante de uma florada de inverno. Eis que senão quando, aparece uma noite repentina de estrelas ciscando no céu. Seria um aviso? Uma festa de boas vindas?
Senti um cheiro forte de ciprestes – lembrei de Van Gogh e seus ciprestes faiscantes e fascinantes... e fechei os olhos. De repente me vi cangaceiro, rompendo o agreste na peixeira em busca de cajás, cajus, cajamangas; qualquer coisa que me alimentasse e pudesse viver ali.
No primeiro momento não entendi patavina! Parecia que estava dentro de um envelope secreto, alado e selado. Quando abri os olhos me vi diante dela, num abraço triscado. Um som de buzina me acordou – amanhecia a segunda-feira. Acordei esfomeado, ó xente!
 
 2 - Leila de Barros:
 
Ele me contava sempre esses seus sonhos impressionistas, afinal éramos crianças e fantasias eram nossa brincadeira preferida...
Tínhamos sim, fome de tudo. Afeto, pão e circo.
Era noite quando abri a minha caixa de guardados e muitas estrelas fugiram alegres, encantando o ambiente.
Vesti-me de Colombina e ele desvestiu-se de cangaceiro e transformou-se em Pierrot, mais uma festa à fantasia...
Nossos sentimentos caminhavam em adágio, mesmo em meio ao burburinho externo.
Ao final da noite, ficávamos no telhado observando o céu estrelado até a aurora surgir e então devorávamos as estrelas dentro e fora do quadro de Van Gogh.
A festa acabava em canja e peras debruçadas sobre a mesa de madeira de lei, como bem convém ao despertar de todos os sonhos reais, quando a mãe nos chama para jantar...
 
3 - Vera Vilela:
  
A realidade nos chama e nos toca sempre no momento certo, afeições em forma de comida, gostinho de amor maternal que jamais esqueci. Momentos mágicos de união e carinho, como uma redoma imune às exterioridades da vida. Sempre após o jantar a conversa à mesa sobre o dia do pai, da mãe, a nova vizinha de aparência oriental que recebia um senhor idoso todo fim de tarde. O Mané da venda que abandonou mulher e filhos para morar com a moça balconista. O Zé que andou vendendo suas coisas por causa do desemprego. O João que comprou caminhonete nova e que meu pai chamava de frívolas ambições, a outra tinha menos de três anos. Ouvindo essas histórias eu achava mesmo que nossa vida era muito boa. Melhor o telhado e o céu estrelado...sem dúvida.
As manhãs geladas não encorajavam a ida à escola, vontade mesmo era de pular na cama ainda quente da mãe e ficar lá preguiçosamente até o sol esquentar, mas o cheirinho de pão e café fresquinhos tinham a mesma capacidade de me tirar da cama do que a bronca da mãe com o chinelo na mão. Imaginava a manteiga derretendo no pão quente e corria para tirar o pijama.
 
 4 – Fátima Michels:
  
Naquele dia, foi diferente. Diante do espelho enquanto me vestia, meus olhos se fixaram no detalhe. Justo ele, o professor de artes, tinha percebido.
 — Você também tentou cortar? - disse sorrindo, apontado com o lápis para o lobo da minha orelha.
 — O quê?
 — Nada, nada. Só estava observando aquela marquinha ali...
Assim pega de surpresa, em algo tão traumático para mim, e vindo dele, sempre tão amoroso, parecia que o chão faltava debaixo da carteira. Eu não acreditava que estivesse acordada, só podia ser um pesadelo!
— Não estou compreendendo – respondi completamente perturbada deixando cair pincel  e aquarela.
— Calma menina, eu só estava brincando, por favor, continue, seu trabalho está lindo! Muito boa a idéia de circundar cada astro com uma auréola reluzente!
Terminada a aula fui andando bem devagar. Eu precisava de tempo, não queria chegar em casa com a cara inchada do choro que me acometeu. Dirigi-me ao cais, meu refúgio.
Retirei os brincos e com o espelhinho fiquei medindo cada lado do meu rosto. Ele descobrira meu segredo! Tirei da mochila o diário, arranquei as páginas onde estava a carta para ele, e rasgando em tirinhas bem finas, soltei na água. Retomei os pincéis. Os minúsculos riscos paralelos, colorindo a pedra, me acalmaram. Levaria adiante aquela idéia: doravante todos os teares do mundo seriam meus, e eu, sua Penélope.
  
5 – Mariazinha Cremasco:
  
Será que o cangaceiro que havia em mim teria feito isso na orelhas dela, justo dela? A natureza naquele momento, não me pareceu muito sábia. Por que regenera rabos de lagartixa, tentáculos de polvo e não pode regenerar um rasgo de orelha? Um corte? Simples. É para que tenhamos sempre um pé no chão, para que lembremos constantemente nossas dores e alegrias. Uma marca pode representar tanta coisa...
Mas eu, forte que sou, fico quieto nas minhas  discretas fantasias. Faço de conta que nada me ilude, e, no entanto, minha vida é feita de ilusões.
Não posso deixar de pensar em mim como um menino triste, de olhos baixos, cheio de orgulho e sempre esfomeado, que nunca distingue sonho de realidade. Entre um sanduíche e um doce, entre um prato fumegante de sopa de fubá com couve, penso na bênção que é a vida.
Esqueço dela, que seria a minha Penélope, minha razão de viver, minha fortuna e meu bem maior. Ela seria minha bênção. Ela já não precisa mais me perdoar, eu a esqueci. Faz duas horas que não penso nela, mas ela sempre se lembrará de mim, sempre carregará consigo a marca que eu deixei.
 
6 – Lia Falcão:
 
Minha mente não tem sossego. Sei que gero um livro e esta gestação me consome. Feito cão madrugador, antes de tudo, quero a liberdade de mim mesmo, mas ela não vem. Preciso livrar-me desses espectros reais e fictícios que teimam existir na vastidão da noite: o cangaceiro, o Pierrot, o Mané da Venda, o Zé, o João, o Professor de artes, o Menino Triste, a Penélope e a pupila de Van Gogh.
Preciso libertar-me desses amigos de infância que hoje falam em tom
severo tal Truman Capote: "há uma diferença entre escrever bem e a verdadeira arte; sutil, mas devastadora!"
Tenho de sair dessa angústia,  do desespero em que me encontro e falar de vez o que é preciso dizer.  Tal desnudamento de alma me exaure e qual gênio decapitado, duvido da minha própria sanidade.  Mas é necessário  transgredir-se para que o verbo se faça carne e habite entre nós. Então escrevo e escrevo mais. Sou deus e demônio. Sou vida e morte. Sou céu e inferno. Sou meus personagens. Resta apenas separar o real do fictício, o bem-me-quer do malmequer e então parir as verdades que preciso para que o leitor possa me enxergar entre os segredos escondidos no  coração - essa caixa de pandora infinitamente estúpida e mágica.


7 – Alberto Carmo:
 
Por mais que tente me decapitar, minha faca perdeu o fio, escorrega e não consegue nem passar manteiga no meu pão. Vago num lugar que não existe, madrugo sem perceber quão severa é a minha teimosia. Ainda que me disponha a transgredir tudo em que acredito, entre o Céu e o inferno quero os dois, pois a mim pouco importa se há riscos ou petiscos – quero a vida em plenitudes quintanianas. Ofuscamento e sombras – que se virem os dois para se entender. Quero chamas, nem que sejam geladas. Brasas pontiagudas que levem minhas sensações ao delírio supremo. Porque só assim conseguirei escalar aquela montanha tão próxima, colher a margarida derradeira e lhe decepar todos os malmequeres. Percebo no horizonte longínquo um amanhecer renascido. Uma onça pintada rugiu no mato e acordei, sedento de um café bem forte e de cheirar aquela manhã.

8 – Leila de Barros:
 
Minha natureza tem sido tal e qual, como a de uma onça pintada, mas vez por outra, deparo-me com um animal mais manso dentro de mim, assim como uma ovelha. E é interessante notar quantas personalidades nos vêm à tona e não nos damos conta disso em nossa rotina estressante. Somos cangaceiros, penélopes, "clowns", crianças, fadas e trangressores. As nossas discretas fantasias muitas vezes são reveladas e coramos perante os outros e perante à vida. Mas somos assim, temos orgulho de sermos assim. Um tanto ofuscados pelo que já conquistamos e deslumbrados com nossa 'pessoalidade', como se fossemos eternos modelos dos quadros de Van Gogh e assim eternizados. Sempre caminhamos como guerreiros dourados que possuem uma couraça eterna. Esquecemos as bençãos. Ah...como esquecemos. Mas, nos resta caminhar, hoje amanhã e sempre, corrigindo as rotas e vislumbrando uma imensa fortuna no porvir, a redenção das onças pintadas que carregamos.
 
9 – Fátima Michels:

Levantei a cabeça e percebi que ele vinha na minha direção, como se caminhasse sobre as águas. Bem assim conforme explico tinha a aparência de nuvem, mas era pessoa. De outras vezes, ali naquele cais já me ocorrera essa visão totalmente fora da realidade. Coloquei a cabeça novamente entre os braços. Busquei dentro de mim toda centelha de força que afastasse as possibilidades de serem outras daquelas manifestações frívolas dos meus devaneios. Em um livro muito antigo eu aprendera que imaginar palavras e ficar repetindo-as tipo um mantra, poderia afastar idéias perturbadoras. Afeições! Foi como um relâmpago, que veio e falei baixinho: Afeições. Coisas do coração, laços, conforto. Eu precisava entregar-me a sentimentos de serenidade, desprendimento e leveza. Fiquei ali por tanto tempo que fui me transpondo, sem perceber, para outra dimensão. Completamente alheia as exterioridades agora eu flutuava no campo de trigo de tons ocre, amarelo, bem próximo onde os guerreiros dourados faziam as pinturas. Enxerguei-as claramente em cada detalhe. Consegui compreender tudo naquele momento. Meu pacto com o absurdo estava decifrado e meu demônio de estimação desistia. 
 

10 – Mariazinha Cremasco :  

Tudo era nebuloso, tudo parecia cinza. Era preciso clarear as idéias, dar sentido a todos que povoavam a mente. Reis, rainhas, reais ou irreais. Não, era um engano. O demômio não estava absolutamente decifrado. Em pé, livre, liberto, aberto feito um livro, vermelho feito o inferno, instigando: "Faça! Faça! Faça!". Mas sabia que não teria coragem de enfrentar o Pierrot, fruto da sua verdade ou da sua loucura. Estava traçado seu adágio. Se cumprisse suas ordens, jamais veria a aurora novamente, jamais comeria a fruta preferida, doces e amarelas peras, que certamente não lhe seriam servidas no dia de sua condenação.
Embora entre névoas, continuava procurando a serenidade, a harmonia, coisas que lhe pareciam tão distantes e intangíveis. Buscava o azul. Queria só o azul e enxergava o vermelho do inferno. Queria conforto, encontrava o vento gelado das manhãs nos campos cinzentos. Enganara-se.
Estava novamente fora de si. Como sair dessa angústia? Como retomar sua alma, agora desnuda? Essa caixa de pandora, realmente estúpida e mágica, que é... a vida.


11 – Vera Vilela :
 
Só há uma maneira de afastar fantasmas: Enfrentando-os.
Hoje acordei com uma enorme sede de acabar com tudo isso. O despertar para a vida, o mundo real e as contas a pagar sobre o armário da cozinha. Somente o desfecho desse meu suplício resolveria tudo.
Pego a caneta e o amontoado de papéis sobre a escrivaninha. Lembro-me bem: página 181 – “O cangaceiro que há em mim”, escrevo.
 
Naquela manhã minha bela Penélope me conta sobre seus mais íntimos sentimentos:
— Não, não há mais amor em mim, o que nos unia está trincado, não resistiu aos seus loucos devaneios. São muitos em um, impossível reconhece-lo a cada instante. Nosso destino está selado. Volto a minha vidinha normal de atendente em uma repartição pública e quem sabe lá encontro a paz, a tranqüilidade e a mesmice que tanto preciso.
E assim partiu meu amor, como a florada da laranjeira da última estação, mas não haverá frutos, somente galhos secos a torrar no sol do verão. Eu não entendi patavina. Só me restou aceitar e chorar. Um grande amor resistiria a minha mente perturbada, afinal temos todos um pouco de loucura dentro de nós.

Tão fácil terminar um amor nesse romance, as lágrimas que molham meu rosto selam este final beijando a tinta preta que jaz sobre o papel amarelado.
Levanto-me, tomo um gole de vinho e olho pela janela, quisera eu ter agora uma última visão: Ela chegando com seu chapéu enfeitado de camélias (posso até sentir o cheiro), vestido branco esvoaçante, pés descalços e seu largo sorriso no rosto.
  

12 – Ly Sabas: 

Voltei da editora quase agora. Entreguei o original para a revisão. Confesso aqui só para você, amoroso coração solitário, que não consegui parir as verdades e meus personagens seguiram enlaçados, sem nenhum vislumbre de separação.
O silêncio que agora reina na noite estrelada, na pequena vila de cartão postal aonde me refugiei, enche-me de ternura por todos que sofreram em cada página, amargando suas angustias em eterno vai e vem.
Não fui eu quem escreveu, foram eles quem se entregaram. Tomara alguém consiga enxergar o bordado de emoções, nos diversos teares  disfarçados em páginas amareladas. Fiz questão de manter a mesma cor quando escolhi o papel em que ficarão aprisionados Penélope, Pierrot e seus fantasmas.
Reluzente a noite se torna e metade da vila ainda está acordada. Que segredos rondarão por detrás das janelas iluminadas? Que outro escrevinhador derramará seu mel em sonhos com morena de olhos d’água? Mas isso é outra história que ficará esperando a sua vez. 
 
 

Obras que serviram de inspiração:

1- Dicionário de Rimas da Lingua Portuguesa -  José Augusto Fernandes

2 - Estrela da Vida Inteira - Manoel Bandeira - Livraria Editora José Olympio - 1966

3 - Dicionário Machado de Assis - Mecenas Editora - 2007

4 - Oráculo de Maio - Adélia Prado - Siciliano - 1999

5 - A Descoberta do Mundo - Clarice Lispector - Rocco

6 - Ave Palavra - Guimarães Rosa - Nova Fronteira 

7 - O poeta não tem fim - Vinicius de Moraes - Editoras V&R - 2002
 
Ly Sabas
Enviado por Ly Sabas em 07/12/2010
Alterado em 22/09/2014
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